quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Sonho de uma noite de Inverno

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É certo que o meu sonho de juventude, quando a leitura de Álvaro de Campos me galvanizava na busca de palavras temperadas a aço e a de Camus as corrompia, como que enternecidas na sintonia das passadas de um amante desregrado, e a de Kafka as deixava perplexas, meditativas, num quarto sombrio de noite fria e chuvosa escaravelhado, ao mesmo tempo que a de Tolstoi as avassalava numa grandeza de cenários tão presentes quanto irrealmente actuais, a de Dostoievsky as dilacerava com o recurso a um machado linguístico de remorsos escondidos numa pensão bafienta a saber a alho, urina e sangue, algures numa Rússia que sem ter conhecido encontrei depois vezes sem conta, nas obras que iam dar a lado algum a fazer de servente na margem sul do Tejo (pele queimada, bolhas nas mãos), na venda de seguros de vida aos ricos que deles não precisavam mas gostavam de comprar porque é isso que os ricos fazem, na divulgação agressiva de medicamentos que a ninguém importavam a não ser aos accionistas leitores do Financial Times, lá longe em Wall Street e na City e cá perto no palácio do bolsa, essa vida, esses cadernos, esses livros, esse sonho, essa aspiração, as palavras referidas - é verdade, juro-o primeiro perante mim próprio -, esse momento jamais será cumprido: nunca serei um escritor na verdadeira acepção da palavra; não serei alguém que escreve algo em si tão revolucionário ao ponto de alterar radicalmente o entendimento das pessoas, dos seres sapientes em torno de quem cruzo à velocidade dum fulminante, dos que estão, dos que foram, ou sequer dos que nem me cruzei ainda; assim é o meu talento, de tão brilhante, de tão ofuscante, apaixonante, mordaz, exaltante, visceral, repugnante ou imoderado que possa ser. 

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